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sexta-feira, 19 de abril de 2024

O gingado virtuoso da música brasileira

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08/02/2016 08h53 – Atualizado em 08/02/2016 08h53

Fonte: Carta Capital

Jovens instrumentistas abrem novas searas rítmicas

No apartamento de Ricardo Herz, duas rabecas pendem da parede ao lado de fotos, objetos decorativos e lembranças de viagem. No chão, uma caixa de forro acetinado acomoda um violino-tenor. Outros três, “o oficial, do século XIX, um meio-termo e um velho de guerra para levar na praia”, estão por perto. Herz usou a bagagem da formação clássica para reinventar o violino. Apaixonado pela música popular, pôs a técnica erudita a serviço da ginga de ritmos como forró e choro. Aos muitos que o reconhecem como virtuose, diz acreditar em dois talentos, um musical e outro voltado ao estudo.

O violinista de 37 anos pertence a um time de instrumentistas de qualidade excepcional comprometidos com a arte e arrebatados pelo encantamento por ela produzido. O grupo inclui Samuca do Acordeom, 32 anos, talento esculpido na música regional gaúcha, hoje dedicado ao choro, o piracicabano Alessandro Penezzi, 41 anos, cuja carreira de violonista começou a desabrochar aos 18 anos, quando trocou a tediosa rotina de bancário por apresentações em bares e restaurantes, e Gian Correa, 27 anos, paulista de Caconde. Ambos são mestres do violão 7 cordas, que deixa a modéstia da função de acompanhamento para brilhar como solista.

A sanfona apimentada de Samuca encontrou o violino suingado de Herz por obra do acaso. “Fomos selecionados para o projeto Rumos do Itaú Cultural e nos juntaram num duo. Ninguém se conhecia, podia dar tudo errado, mas deu liga desde o início”, conta o violinista. “Quando eu soube quase desisti. Toco música popular. Ao vê-lo num vídeo com Dominguinhos respirei de alívio. Deu muito certo”, confirma Samuca. O primeiro resultado foram shows em 2015 em homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga. “O Joquinha, sobrinho do Gonzagão, participou, foi muito bacana.”

A parceria rendeu ainda o CD Novos Rumos, que a dupla lança dia 17 de março em São Paulo, em show no Itaú Cultural da Avenida Paulista. “No repertório, músicas de Samuca (Fala Agora, Esquentango), minhas (Chamaoquê, Boinas, Bigodes e Guarda-Chuvas), alguns clássicos (Receita de Samba, de Jacob do Bandolim, Nocturna, de Julián Plaza), improvisos e participação de Gian Correa no 7 cordas.” Chamaoquê surgiu de uma conversa com Yamandu Costa, regada a cerveja e chimarrão. O gaúcho queria saber por que Herz estudava fora do País, foram dez anos entre França, Israel e Estados Unidos, e o aconselhou a explorar os muitos ritmos brasileiros. “Você conhece o chamamé?”, perguntou. “Chama o quê?”, rebateu o paulistano. Virou música.

Correa cresceu em meio musical. Bandolim, cavaquinho, violino e violão eram tocados pelo pai e pelos avós. Da escola de música da prefeitura de Caconde, aos 7 anos, passou para as rodas de choro e aprimorou o ouvido com discos de Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo. O contato primeiro com o 7 cordas foi mágico. “Fiquei doido com o contraponto. É uma linguagem livre, de criação instantânea, o fraseado é improviso puro. Aquilo me encantou.” Aos 15 anos, tirou a corda mais aguda do violão tradicional. Aplainava o caminho para as “baixarias”, contraponto feito em notas mais graves.

“Comecei a estudar o Dino 7 Cordas e tentar descobrir como ele tocava. Ouvi muito Luizinho 7 Cordas, Zé Barbeiro, Osvaldo Colagrande e Israel Bueno de Almeida. Num segundo momento, Rogério Caetano me influenciou bastante. Ele inventou um novo modo de tocar, desenvolveu questões de escala, recursos pouco usados.” Correa reverencia China, Otávio Littleton da Rocha Vianna, irmão de Pixinguinha, e Tute, Artur de Souza Nascimento, pioneiros do 7 cordas.

Em Mistura 7 (2013), seu primeiro CD, o 7 cordas de Correa conversa com um quarteto de saxofones e um pandeiro. Josué dos Santos, sax-soprano, Jota P. Barbosa, sax-tenor, Vitor Alcântara, sax-alto, César Roversi, sax-barítono, e Rafael Toledo, pandeiro, formam com ele um arranjo musical em que as funções de solo e acompanhamento não são fixas. Em Remistura 7 (2015), continuação do projeto, o compositor que começou no choro e desenvolveu uma linguagem no samba explora novas sendas. “É um disco com influências de jazz e música erudita”, descreve o músico, que recorreu a financiamento coletivo para transformar o CD em DVD.

Autor de 130 músicas, entre choros, valsas, frevos, baiões e sambas, Alessandro Penezzi é multi-instrumentista, toca violão-tenor, cavaquinho, bandolim, flauta e violão 7 cordas. “Ele é uma referência no choro”, elogia Herz, que dividiu o palco com Penezzi e Toninho Ferragutti numa série de shows realizados em 2013 em homenagem ao Trio Surdina, formado nos anos 1950 pelos virtuosos Garoto, Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeom.

O 7 cordas ocupa lugar especial na vida de Penezzi. “Tenho carinho por ele. Gravei com o saxofonista Nailor Proveta o CD Velha Amizade, meu primeiro disco com o violão 7 cordas. É um instrumento de muitas possibilidades, muitas opções de acordes, seja no acompanhamento, como fazia o Dino 7 Cordas, seja de modo inovador, como o Gian Correa, o Yamandu Costa e o Raphael Rabello.”

Penezzi, que cresceu em atmosfera musical, em que pai, mãe e avô tocavam violão, bandolim e cavaquinho, teve entre seus mestres Carlos Coimbra e Sérgio Belluco. “Estudei violão erudito com Belluco, a partir dos 11 anos. Me interessei por choro e ele me levou para tocar num regional.” O caminho para o virtuosismo passou pela persistência. “Exige entrega total. Quem estuda violão fica torto por várias horas, é um instrumento incômodo. Na condição de professor, vejo que esse é um dos maiores problemas. O dom para mim é a força de vontade de ultrapassar essa fase. A pessoa ama tanto o ofício a ponto de insistir e superar.”

Parceiro de Paulo César Pinheiro, com quem tem 12 músicas, está em dívida com o letrista e com Yamandu, que lhe cobram tempo para gravar um CD. “Tocar com ele é tocar junto, é um dos músicos mais generosos que conheço.”

Samuca, originário da música tradicional gaúcha, começou as estripulias na sanfona aos 13 anos. “Não sabia jogar bola e para não ficar sem fazer nada fui estudar acordeom.” A partir de 2009, voltou-se à música instrumental. “Ser músico é estar conectado. O choro exige dedicação diária, muitas horas”, diz. “Ele ganhou vários prêmios, conhece tudo”, enfatiza Herz, cujo tempo hoje é dedicado à composição e estudo de improvisação.

São entre seis e sete horas diárias ao violino, instrumento de grandes dificuldades. “É preciso estudar muita escala para saber onde posicionar o dedo, pois o instrumento não tem traste e qualquer deslize aparece. A afinação é um problema. Quando você puxa muito a corda num pizzicato, ela esquenta, dilata, fica mais grave e é preciso afinar novamente. Quando estudei na Berklee Colleg of Music, entre 2001 e 2002, tive tendinite no braço esquerdo. Acabei por desenvolver uma técnica corporal, um jeito de tocar sem me prejudicar. Fui persistente.”

Violino apoiado no ombro, Herz improvisa, toca choro, forró. Os olhos brilham ao mover o arco, fazer staccato, produzir um som mais flautado, imitar o resfolego da sanfona. “É tudo na memória do dedo. No palco, coloco uma música lírica, um frevo que mostra agilidade, um xote, que é mais suingado, uma composição mais torta, ritmos menos previsíveis.” Com Pedro Ito, bateria e percussão, e Michi Ruzitschka, violão de 7 cordas, forma o Ricardo Herz Trio.

Apresentam-se em palcos dentro e fora do Brasil, em que mesclam sons do CD Aqui É o Meu Lá, de 2012, ao repertório do próximo, Torcendo a Terra, em fase de captação de recursos. Ex-aluno da conceituada escola de violino clássico Fukuda, Herz tem em Dominguinhos grande inspiração. “Ele é um exemplo de virtuosismo não barato, um sujeito humilde que deixou uma escola.”

O violino suingado de Herz encontra a sanfona apimentada de Samuca

Correa, encontro mágico com o 7 cordas. (Elisa Gudin)

Penezzi, o colorido dos acordes e das possibilidades.

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