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sexta-feira, 29 de março de 2024

A religião popular: única esperança contra o domínio do deus Mercado

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21/01/2019 11h18

A religião popular: única esperança contra o domínio do deus Mercado. Entrevista com Harvey Cox

Fonte: Revista IHU On-line

“O mercado é uma contradição direta do Deus cristão. Não premia a compaixão ou a ternura”. Fala de forma muito clara, como sempre fez, Harvey Cox, noventa anos, teólogo batista (nascido em 19 de março de 1929 em Malvern, Pensilvânia), que em meados dos anos 1960 foi muito popular com alguns ensaios brilhantes e imprudentes, como A cidade secular (mais de dois milhões de livros vendidos ), A festa dos foliões até The seduction os the Spirit (A sedução do espírito) em que ele prospectou uma teologia da religião popular.

A entrevista é de Andrea Monda, publicada por L’Osservatore Romano, 19/20-01-2019. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

É justamente esta dimensão popular que aproximou as especulações do teólogo estadunidense com o magistério do Papa Francisco: “Entre as intuições mais importantes que nos propôs o Papa Francisco estão o seu respeito e sua exaltação da “religião popular”. Se esta conseguir evitar ser devorada e domesticada pelo Mercado, pode ser a arma mais preciosa das pessoas comuns para resistir aos projetos imperiais do deus Mercado”.

O rosto do velho teólogo se parece muito com o Obi-Wan Kenobi, interpretado por Alec Guinness em Star Wars, e ao reler suas respostas cabe pensar que a semelhança não é apenas física. O Mercado é um verdadeiro império, contra o qual os homens, aliás, os povos, devem se rebelar e resistir. Então Cox-Kenobi viaja o mundo para despertar a esperança e convidar as pessoas a praticar um “ateísmo” sadio contra a religião hoje dominante; e, ocasionalmente, ele passa também pela Itália, assim como fez em Trento em 18 de outubro de 2016 com uma conferência que as Edizioni Dehoniane publicaram no ano seguinte sob o título Il Mercato Divino. Come l’economia è diventata una religione (O Mercado Divino. Como a economia se tornou uma religião), um texto que ele quis dedicar ao Papa Francisco.

Entramos em contato com ele depois de ter sido divulgada a notícia, em 4 de janeiro último, relativa ao fato que o FMI, Fundo Monetário Internacional, declarou que a dívida pública e privada mundial triplicou em comparação com 1950, atingindo um recorde de 184 trilhões de dólares, equivalente a 225 por cento do PIB global, pelo que a dívida per capita é de US $ 86.000, duas vezes e meia a renda média per capita.

Pedimos-lhe um comentário com relação a esses números impressionantes e ele prontamente respondeu: “É difícil ver como o nosso sistema econômico atual possa sobreviver ao gigantesco colapso que, devido à grande acumulação da dívida, agora parece inevitável, e mais perto do que distante. Mas a questão cruel é quem vai sofrer mais por essa calamidade? Os ricos encontrarão maneiras de escapar?

Vamos partir de longe para raciocinar junto com este Cavaleiro Jedi da teologia e precisamente a partir daquela aguda e amarga afirmação do historiador britânico Arnold Toynbee em seu ensaio A humanidade e a mãe-Terra que destaca como o Ocidente tem colocado nos altares Francisco, o Pobrezinho de Assis, que abraçou a Irmã Pobreza, mas depois preferiu seguir o pai de Francisco, Bernardone, o rico comerciante de tecidos de Assis.

Eis a entrevista

De Francisco de Assis ao Papa Francisco: o senhor é um teólogo protestante, mas percebeu no atual Pontífice um elemento que o incentivou novamente a travar uma “boa batalha” e para mim parece que esse elemento é a alegria, a mesma alegria que movia o santo de Assis e que agora impele o Papa a lembrar aos cristãos que não podem se resignar à depressão que nasce de se sentir presos em sistema desumano criado pelo deus Mercado. Se o cristão tem uma Boa Notícia, não pode deixar de anuncia-la com alegria, mesmo que isso signifique se tornar uma consciência crítica contra a “religião” que hoje impera, a do Mercado. Esse elemento de alegria está de alguma forma ligado à teologia lúdica ilustrada em seu ensaio “A festa dos foliões”?

Sim, penso que na Evangelii gaudium o Papa Francisco certamente restaurou um elemento da importante dimensão “lúdica” do Evangelho cristão e da vida cristã. Isso é precisamente o que eu tinha em mente em meu ensaio de 1969. Às vezes parecia ter desaparecido de nossas vidas, e é por isso que eu gosto de São Francisco e do Papa Francisco (e os nossos irmãos pentecostais). Na Evangelii gaudium, o Papa evitou o tom de reprovação que estraga tantos comentários teológicos sobre a distância entre ter demais e ter muito pouco. Em vez disso, ele nos convida a entrar em uma vida alegre de compartilhamento e reciprocidade.

Em seu ensaio de 1965, “A Cidade Secular”, afirmava que “O projeto de Deus na história consiste em ‘desfatalizar’ (defatalize) a vida humana, colocando a vida do homem nas próprias mãos do homem e dar-lhe a terrível responsabilidade de governa-la”; hoje o programa do cristão é o de desfatalizar o Mercado, tirar a aura sacra do Mercado, desabsolutizá-lo?

Na época, eu pensava na “desfatalização” da vida humana, não no deus Mercado, mas considero que seja uma descrição apropriada do que os cristãos (e os outros) precisam fazer. Hoje muitos pensam no Mercado como uma espécie de força não-humana ou sobrenatural, assim como o destino. É bom lembrar que o primeiro cristianismo nasceu em um mundo onde as forças espirituais dominantes para a maioria das pessoas eram o fado ou o destino. O Mercado, como o destino, nos é apresentado como o poder dominante de nosso tempo, ao qual devemos nos adequar e que devemos aceitar, por mais distorcidos que possam ser os seus movimentos. É por isso que o Papa o chamou de “mercado divinizado”. Mas o mercado é uma contradição direta do Deus cristão. Não premia a compaixão ou a ternura. Além disso, não é uma força sobre-humana independente. Foi criado pelos seres humanos e é, portanto, de acordo com a expressão bíblica, um ídolo.

O mercado permaneceu como a única instituição que não está em crise em relação a outras como a família, a nação, a tradição, a religião, o campo e a cidade. De fato, todas as identidades entraram em crise: o gênero, colocado em crise pela teoria de gênero; a família, hoje desintegrada; nas cidades todos emigraram do campo, mas com o resultado de grandes centros urbanos burocratizados onde se vive em completo anonimato; a religião foi colocada sob dura crítica pela laicidade. Essa crise da identidade gera uma reação que faz renascer, sob diferentes formas, a praga do fundamentalismo: o fundamentalismo nacionalista (populismo); aquele religioso (até os extremos do terrorismo); aquele científico (a ciência tem as respostas para todos os problemas e não existe outra verdade senão a científica) e aquele econômico. A religião do Mercado é uma religião fundamentalista? Como se pode responder ao seu desafio?

A religião do mercado é, de fato, uma religião fundamentalista em um sentido importante: não aceita nenhuma evidência que possa questionar ou minar a sua frequentemente afirmada “realidade”. As depressões vêm, mas o Mercado resiste. Um número infinito de pessoas está morrendo de fome, mas permanece imperturbado: “Amanhã será melhor. Basta ter paciência”. É inútil discutir com os acólitos do Mercado. O que precisamos são mais pessoas dispostas a abraçar o Deus de alegria e compaixão, para mostrar um tipo alternativo de vida que está disponível e que se tornará mais convidativo quando no fim o Deus Mercado fracassará, algo que, acreditamos, certamente irá acontecer.

A principal característica do Mercado é sua tendência a crescer, uma tendência infinita. É a antiga história da serpente que insinua na mente do homem a dúvida e o desejo de que se possa comer tudo?

O Mercado e o câncer têm uma característica em comum: ou crescem ou morrem. Mas um sistema econômico/cultural/religioso que dependa do crescimento infinito não pode sobreviver em um planeta finito. O nosso pobre planeta explorado e maltratado já está começando a nos dizer, em termos inequívocos, que está se aproximando de seus limites. Começamos a entrever o crepúsculo do deus Mercado.

O senhor afirma que, como qualquer boa religião, até mesmo aquela do mercado tem um escritório dedicado à “propaganda fide”; sob esse aspecto, desempenham um papel importante a publicidade tão invasiva e o fenômeno da globalização. O Papa falou de globalização da indiferença, um outro padre jesuíta, Adolfo Nicolas, de globalização da superficialidade (também facilitada pelas redes sociais): as duas coisas estão interligadas em uma mistura completamente negativa, ou a globalização tem uma alma que é ainda pode ser salva?

Nenhum escritório de propaganda religiosa jamais teve algo que sequer chegasse perto do alcance e da astúcia da publicidade moderna do deus Mercado. Ela é intrusiva, persistente, inevitável e global, gerando uma comunidade pseudo global, que na verdade está cada vez mais dividida entre os poucos que estão no topo e uma crescente maioria que se encontra abaixo. Os missionários do deus Mercado usam todos os meios para aumentar sua fatia de participação, incluindo, principalmente, a insegurança sexual e a confusão espiritual das pessoas. O deus Mercado insiste em nos dizer que devemos comprar agora: não refletir. Mas, no fundo, as suas promessas são vazias e insatisfatórias. E, de fato, é assim que devem ser, porque amanhã devemos continuar a comprar e a consumir.

Foto: Ilustrativa

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