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Florestan Fernandes: um intelectual vindo de baixo

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06/08/2011 17h32 – Atualizado em 06/08/2011 17h32

No dia 10 de agosto, fará 16 anos que o sociólogo e político brasileiro Florestan Fernandes morreu.

Pronunciamento do Deputado Federal Ivan Valente – PT/SP (Atualmente no PSOL), em 10 de agosto de 2005

Florestan Fernandes veio de família humilde. Filho de uma imigrante portuguesa analfabeta, que como lavadeira o criou sozinha, engraxate quando criança, sua trajetória lembra a de milhões de brasileiros que lutam de forma árdua pela sobrevivência. Dono de uma coerência férrea soube fazer de seu caminho de vida exemplo. Não sendo daqueles que, ao ascenderem social e intelectualmente, abandonam suas origens, fez um esforço titânico para compreender, a partir de sua própria trajetória, os caminhos interrompidos para os “de baixo”. Numa história que demonstra que a dominação produz cicatrizes e feridas intransponíveis para a maioria, Florestan se interrogou sobre o porquê de sua mãe não querer que ele estudasse para além da necessária formação para o trabalho manual. Descobriu que Dona Maria Fernandes tinha medo de, ao estudar, o filho saísse de seu meio e nunca mais retornasse ao mundo que deixara. Florestan percebeu e demonstrou mais tarde, na Integração do Negro na Sociedade de Classes, como o elemento da mentalidade arraigada da submissão entre os dominados incidia naqueles que estavam desprovidos de recursos para enfrentar uma sociedade de classes que mantinha elementos da ordem estamental e incutia nos negros um componente de autodepreciação que os impedia de assumirem as oportunidades abertas nos anos 50. O referido estudo foi pioneiro em desvelar o “mito de democracia racial” que escondia o forte preconceito contra os negros existente em nossa sociedade.

Em relação aos índios, iluminou o drama de Tiago Marques Aipobureu, um índio bororo desterrado e afastado de sua própria gente, vivendo no limite de duas culturas radicalmente distintas: a branca e a indígena. Nesse drama individual, o sociólogo, por meio do método da história de vida, focaliza a problemática de todo um povo. Nos dois estudos sobre os primeiros habitantes de nossa terra, os tupinambás, nos anos 40, o saber construído sobre aqueles que habitavam este Brasil desde tempos imemoriais aproxima o sociólogo das grandes questões de etnias e culturas que, pelo avanço das relações capitalistas predatórias, são exterminadas e de etnias condenadas a viver como estranhas em suas próprias terras.

Nada mais atual, quando nos defrontamos com a questão da demarcação das terras indígenas e com o atraso no reconhecimento do direito desses povos a sua cultura e de serem agentes de preservação ambiental e da biodiversidade.

Na própria escolha dos seus objetos de pesquisa, Florestan já revelava a preocupação que iria se materializar anos depois na sua ação política mais intensa: a tentativa de associar a produção do conhecimento com o compromisso da transformação social e da melhoria das condições de vida dos mais pobres.

A trajetória acadêmica e intelectual do mestre Florestan Fernandes já seria razão suficiente para homenagens por sua vasta contribuição ao desenvolvimento e à consolidação da Sociologia como ciência, inaugurando um novo modo de pensar, com rigor, método e clareza científica.

Uma vida a serviço dos trabalhadores e do socialismo

O motivo principal que nos traz no dia de hoje não é só o de homenagear a memória desse grande intelectual. É o de lembrar seu papel de tribuno do povo, de militante socialista que defendeu, nas ruas e nesta casa, os interesses dos trabalhadores e dos oprimidos de nosso País.

Professor renomado, Florestan foi perseguido pelos generais, preso e aposentado compulsoriamente da USP pelo AI-5, em 1969. Conheceu o interrogatório, a prisão, a proscrição intelectual e a expatriação. Isso o obrigou a sair do país e ministrar aulas – brilhantemente – em Toronto (Canadá), Princeton (USA), dentre outras universidades estrangeiras. Voltou ao Brasil e retomou a redação daquela que viria a ser a sua principal obra: A Revolução Burguesa no Brasil, um livro – iniciado em 1966, interrompido e concluído em 1974 – que demonstra que a ditadura militar é a própria realização dos ideais burgueses, no Brasil, de um Capitalismo dependente que se constitui no amálgama de forças sociais retrógradas com forças sociais dinâmicas – aquilo que Florestan destacaria como a especificidade da formação brasileira: a coexistência e o choque entre “sistema competitivo” e “sistema estamental” , uma via passiva de afirmação do capitalismo que passava pela concentração de poder e riqueza nas mãos de poucos, sem nenhum freio, e a completa ausência de um projeto que visasse à satisfação dos mínimos anseios democráticos e distributivos dos “de baixo”.

Hoje as elites fazem uso de outro tipo de ditadura, a ditadura dos mercados, que seqüestra a esperança e derrota a mudança. As artimanhas das elites dominantes para suprimirem os sonhos nos colocam diante do fato de que essa formulação de Florestan continua atual. Atual porque demonstra aquilo que Rosa Luxemburgo dizia, há quase um século, sobre as duas opções postas para os trabalhadores: Socialismo ou barbárie. E nessa definição se revela em sua maior amplitude o teórico da revolução brasileira, aquele que defende a ultrapassagem do Capitalismo como condição para uma vida mais digna para o nosso povo, com igualdade, liberdade e justiça social.

Durante toda a vida, Florestan foi exemplo da associação do intelectual da mais fina estirpe com o militante socialista que, na sua luta incansável, demonstra a convicção de que o intelectual tem deveres públicos imperiosos.

Isso o fez, depois de anos de militância solitária, virar representante do povo, fazendo parte da bancada de deputados do Partido dos Trabalhadores, e lutar com garra na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 em defesa dos interesses dos trabalhadores. A bancada petista era pequena, com 16 deputados, mas sua força emanava daqueles aos quais Florestan dedicou seus estudos e preocupações: os sindicatos, os movimentos populares, a organização do povo nas ruas, que fortaleciam a ação de um partido que aglutinava a rebeldia e ganhava forças para capitanear os “de baixo” nos principais embates contra as forças conservadoras que visavam a aprisionar a Constituição na preservação do status quo.

Na ação parlamentar de Florestan, esses embates se concentravam num mandato que procurava aglutinar a defesa da escola e da universidade públicas, gratuitas e de qualidade. Memoráveis foram suas lutas contra o lobby das escolas privadas, que já procurava dar o tom na Constituinte, e sua dedicação na redação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), que o fez retornar a um novo mandato na Câmara dos Deputados, mesmo já debilitado, em função de sua saúde precária, para garantir que a nova LDB fosse promulgada e representasse os anseios mais caros de democratização do ensino, do acesso e da permanência.

Radical sem ser estreito, amplo o suficiente para ser respeitado pelas mais diversas correntes políticas e ideológicas deste País, Florestan nunca deixou de trilhar o caminho da coerência, na defesa de seus ideais e princípios.

Nos últimos momentos de vida, Florestan Fernandes ainda teve a lucidez de empreender o bom combate, de opor ao pensamento único sua energia intelectual e política. Contra a “privataria” que se abatia como grande novidade da panacéia neoliberal de ataques à “ineficiência” do Estado, Florestan defendeu o princípio republicano de que o Estado deveria ser o responsável pelo investimento em educação, numa verdadeira continuidade dos ideais que expressava nas memoráveis campanhas em defesa da educação pública e gratuita dos anos 50.

A maior lição que Florestan nos deixou ao final da sua vida. Em seu segundo mandato já vira quão perversa era a assunção do Neoliberalismo, da crença em um novo deus criado pelos homens, o deus-mercado, que assumia em nosso país caráter de uma forte ideologia que culpabilizava as vítimas por aquilo que seus algozes eram os responsáveis: a desigualdade social, a pobreza e o saque aos recursos do Estado. A mercantilização do ensino e da saúde, a dilapidação dos serviços públicos, o ataque aos direitos dos trabalhadores foram conseqüências diretas daquilo que se apresentava como uma panacéia a resolver todos os males da nação. Florestan soube muito bem apontar a necessidade de travar uma dura luta contra essa ideologia que, travestida de novidade, capturava até mesmo o ideal de setores da esquerda.

Florestan não temia expor suas opiniões, fazer de sua vida lição de coerência, na defesa dos trabalhadores e dos “de baixo”. Sua lição básica para aqueles que escolhem a trilha dos trabalhadores, das maiorias nacionais é a de que o militante deve ordenar sua ação por três deveres: não se deixar cooptar, não se deixar liquidar e garantir vitórias para o povo.

Contra as idéias de força, a força das idéias. (Florestan Fernandes)

Pronunciamento do Deputado Federal Ivan Valente – PT/SP (Atualmente no PSOL)
Brasília, 10 de agosto de 2005, em Sessão Solene pelos dez anos da morte de Florestan Fernandes.

Colaboração: Cleber A. Arantes
Professor de História e pesquisador – UFGD

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