Pedofilia em questão – Por Chaim S. Katz
“A produção de um sujeito cada vez mais jovem borra a distinção entre infância e adolescência, e obriga ou faz emergir sua erogeneização precoce, incita seu reconhecimento sensível”, escreve Chaim S. Katz, psicanalista, em artigo publicado pelo jornal O Globo, 15-09-2010.
Eis o artigo.
A pedofilia é um tema que está cada vez mais presente nas discussões da sociedade com forte reflexo nos meios de comunicação de massa. Entendê-lo em sua atualidade é uma necessidade, e esta é a proposta da Formação Freudiana, instituição psicanalítica que promoverá um fórum sobre o assunto, ano que vem. Este artigo já é, de alguma forma, parte desse fórum, e tem o objetivo de provocar, desde já, uma discussão em relação a alguns aspectos da questão.
A inteligência habitual entende que a pedofilia se constitui de atos e comportamentos sexuais, em que um sujeito adulto ativo toma uma criança ou um impúbere como parceiro ou objeto. Nessa abordagem, o pedófilo seria sempre masculino. Para as compreensões médica e jurídica, aprendese que a criança pedofilizada é submetida passivamente a tais atos e comportamentos, impotente ou insciente para lhes resistir.
Quando nos voltamos para as estatísticas, vemos quase imediatamente que a maioria de tais relações se faz no interior da família da vítima ou através de agentes em quem o núcleo familiar confia, como seus representantes religiosos.
Se os primeiros movimentos são de sedução, seguem-se logo abusos corporais, que marcarão traumaticamente quem foi a eles submetido.
A pedofilia tem características sádicas e o pedófilo, geralmente, não distingue o gênero de sua vítima. Mas o agente adulto não tem sentimento de culpa por seus atos, na medida em que, mais e mais, procura satisfazer seus impulsos imediatos. O ato e sua realização gozosa sobrepujam a culpabilidade.
Na Classificação Internacional de Doenças, o pedófilo é doente de uma parafilia, não sabendo nem conseguindo se relacionar com alguém emocionalmente maduro; seu pênis se modifica, excitando-se desde a apresentação de estímulos infantis; sua inteligência é inferior; apresenta uso imoderado de álcool e drogas; sua ressonância magnética revelaria sempre anormalidades etc. Deste modo, abandonam-se as pedófilas como autoras ativas. Dá-se o mesmo no Direito e seus sistemas, com a criminalização dos atos pedofílicos, quando se propõe uma detenção permanente e indefinida para o atentado violento ao pudor, em que fica subentendido que o homem é o autor usual.
Por outro lado, um fenômeno se impõe às nossas experiências atuais, de sujeitos das chamadas classes médias.
Sabemos que perceber alguém como criança não é um processo natural, que a criança, tal como a conhecemos hoje, objeto de cuidados intensos e disciplinas próprias, como a pediatria, é uma produção do século XIX em diante. Hoje, há uma proliferação do que se pode denominar de precocização ou adultização das crianças.
Famosos atores e atrizes de TV e cinema se exibem como modelos em programas infantis, onde crianças aprendem a se comportar, vestir, representar, expressar, exigir, circular etc. como adultos. Sua erogeneização vem de um mundo de valores adulto, que cria não apenas circulação e mercado, mas, também e indistintamente, valores eróticos e sensuais: a boneca, na qual se deve fazer uma cirurgia plástica nos seios ou no rosto. Saibamos que a indústria de roupas infantis, que tem como modelo as vestes ditas adultas, constitui entre 18% e 20% de toda a indústria do vestuário. Recordemos que na tão conhecida série televisiva “Mad Men”, a filha do publicitário Donald Draper, com 10 anos de idade, está se masturbando no sofá enquanto assiste à TV ao lado de uma amiguinha da mesma idade. A produção de festas infantis é uma enorme indústria e fabricação de padrões de ser e se apresentar, de se subjetivar. Que os meninos começam a ser contratados como jogadores de futebol antes mesmo dos 10 anos de idade (está aí Messi…). Incitados pelas redes de TV, crianças se indistinguem dos adultos, especialmente em sua produção imaginária: todos querem ser atores, mesmo sem… estudar, se preparar para isto.
Ora, esta produção de um sujeito cada vez mais jovem borra a distinção entre infância e adolescência, e obriga ou faz emergir sua erogeneização precoce, incita seu reconhecimento sensível. Haveria ainda o que observar sobre a comunicação, a linguagem da internet, até os gestos e estares dos seus operadores precoces, crianças desde seus 4 anos de idade, para quem não há assuntos proibidos e que não possam ser transgredidos. Tal enorme e importante discussão fica para o Fórum da Formação Freudiana.