23/06/2014 13h31 – Atualizado em 23/06/2014 13h31
Fonte: FIFA
Quando a seleção inglesa visitar Belo Horizonte, nesta terça-feira, o clima será de humildade. Afinal, os comandados de Roy Hodgson já estão eliminados do Brasil 2014 com as duas derrotas que sofreram em dois jogos no Grupo B, e nenhum deles descarta a possibilidade de uma terceira diante da surpreendente Costa Rica.
É tudo muito diferente da última vez em que o English Team esteve em Minas Gerais, há 64 anos. A equipe de 1950 desembarcou na capital mineira de peito estufado, cheia de si, perguntando não se derrotaria os EUA, e sim por quanto. Os ingleses se consideravam os reis absolutos do futebol, e se não haviam sido campeões mundiais até então era simplesmente porque se recusaram a participar das três primeiras edições. Aquela Copa do Mundo deveria confirmar oficialmente a sua superioridade.
Para a Inglaterra, o menor obstáculo rumo à suposta consagração era justamente o selecionado americano, formado inteiramente por atletas amadores que não se dedicavam exclusivamente ao esporte bretão. “Os jogadores americanos tinham outros empregos”, explica Tiago Costa, um historiador de Belo Horizonte. “Joe Gaetjens, por exemplo, trabalhava num restaurante (lavando pratos), enquanto o goleiro ajudava a família numa casa funerária.”
Conforme o jornal inglês Daily Express escreveu às vésperas da partida, “o justo seria que eles já começassem com três gols”. Mas a verdade é que os americanos concordavam. Frank Borghi, o tal goleiro maquiador de defuntos, mais tarde admitiu que o seu objetivo era “evitar que os ingleses marcassem cinco ou seis gols”. Até o treinador dos EUA, o escocês Bill Jeffrey, declarou que os seus jogadores não tinham “nenhuma chance” e eram “cordeiros prontos para o sacrifício”.
Motivos para acreditar não faltavam. Afinal, os americanos vinham de sete derrotas consecutivas, enquanto a Inglaterra havia goleado Portugal por 10 a 0 antes de vencer a então campeã Itália por 4 a 0. Um novo massacre parecia inevitável, e os 13 mil torcedores presentes no recém-inagurado Estádio Independência de fato esperavam por uma exibição de gala da seleção inglesa. No entanto, o que eles testemunharam foi uma das maiores zebras da história das Copas.
Glória para Gaetjens
Mais tarde, algumas pessoas sugeriram que o destino foi traçado no momento em que a Inglaterra decidiu poupar o astro do time, Stanley Matthews, para os testes mais difíceis que viriam pela frente. Mas a decisão pareceu ter influenciado pouco nos primeiros 12 minutos de bola rolando, nos quais os favoritos tiveram nada menos do que seis chances claras de gol, carimbando a trave duas vezes e exigindo uma série de defesas excepcionais de Borghi.
“Poderíamos ter jogado contra eles 100 vezes e vencido confortavelmente em 99”, disse Tom Finney, um dos craques da equipe inglesa. “Mas foi um daqueles jogos que estávamos fadados a perder. Acertamos a trave várias vezes. E depois eles conseguiram o gol, um gol totalmente por acaso.”
O gol de Joe Gaetjens, que deu a vitória à seleção dos EUA, aconteceu oito minutos antes do intervalo e vem sendo discutido desde então. A finalização foi certamente invulgar — Walter Bahr, professor de uma escola na Filadélfia, fez um lançamento despretensioso na direção do goleiro Bert Williams até Gaetjens surgir para desviar a bola para as redes. Os ingleses têm certeza de que a jogada não foi intencional. Os jogadores americanos, porém, pensam o contrário. “Joe sempre marcava gols estranhos, atléticos”, contou Bahr ao FIFA.com numa entrevista de 2010.
Propositado ou não, o tento condenou os americanos a se defenderem com unhas e dentes — e apostar no brilhantismo de Borghi. “O goleiro da casa funerária foi a Belo Horizonte para enterrar os ingleses”, observou o jornalista carioca Argeu Affonso, que cobriu a partida.
Mas houve também um incentivo inesperado para a equipe americana: o carinhoso apoio da torcida mineira. Ao verem a supostamente imbatível Inglaterra que havia atraído tanto público, os torcedores deram voz à simpatia pelos azarões. “Nós sempre torcemos para o time mais fraco, e isso significava torcer para os EUA”, explicou Elmo Cordeiro, de 80 anos, ao FIFA.com. “Mas eu era gandula e fiz questão de devolver a bola para as duas equipes o mais rápido possível.”
Ao soar o apito final, Cordeiro assistiu fascinado aos torcedores invadirem o gramado para erguerem os jogadores dos EUA nos ombros. Até os adversários, totalmente cabisbaixos, reconheceram a dimensão da façanha. “Admirei os jogadores ingleses por aquilo”, comentou o zagueiro americano Harry Keough. “Todos eles nos deram um aperto de mãos.”
Reconhecimento tardio
No entanto, o gesto de nobreza não poupou os ingleses de se transformarem em vilões na Terra da Rainha. De fato, o resultado era tão surpreendente que alguns jornais do país acharam que se tratava de um erro de digitação ao receberem os primeiros relatos pelo telégrafo — e publicaram que a partida havia terminado em 10 a 1. Quando o mal-entendido veio à tona, e a seleção inglesa voltou para casa bem mais cedo do que se imaginava, os mesmos órgãos de imprensa foram implacáveis.
Os jogadores envolvidos nunca se livraram da vergonha. “Sessenta anos se passaram e ainda estou tentando esquecer”, disse o goleiro Williams em 2010. “As pessoas me apresentam como o cavalheiro que jogou pelo Wolverhampton e pela seleção inglesa. E logo perguntam: ‘você jogou contra os Estados Unidos?'”
Seria legítimo supor que, assim como a infâmia se abateu sobre os ingleses, os vencedores virariam mito. Nem tanto. Jeffrey e seus jogadores não foram recebidos como heróis nos Estados Unidos, e a proeza deles só ganhou reconhecimento nacional meio século mais tarde, quando a sua história inspirou um livro e um filme.
Ambos foram chamados The Game of Their Lives (“a partida das suas vidas” em tradução livre, lançado no Brasil como Duelo de Campeões). Para Keough, porém, o título não poderia ser mais apropriado. “Não tínhamos o menor direito de vencer uma equipe como a Inglaterra”, admitiu o ex-zagueiro. “Mas acho que uma partida como aquela acontece de vez em quando só para provar que tudo pode acontecer nesse esporte de devoção, alma e ritmo.”
