01/05/2017 08h30
Fonte: VIX
O século 20 representa mais um triste capítulo na história do índio brasileiro desde a chegada dos europeus, em 1500. Os então donos da terra que depois iríamos conhecer como Brasil eram cerca de 5 milhões à época. Ao longo de quatro centenas de anos, sua população caiu pela metade: estima-se que na virada do século 19 para o 20 viviam aproximadamente 2.4 milhões de índios em nosso país. Hoje, de acordo com o Censo de 2010, são apenas 890 mil indígenas.
Números da população indígena no Brasil
De acordo com os dados mais recentes, estão catalogadas 305 etnias indígenas em todo o Brasil, que compartem 274 diferentes línguas – em relação à diversidade, é uma das maiores do mundo. Os principais troncos étnicos e linguísticos das populações nativas brasileiras são: Macro-Jê, Tupi, Aruak e Karib.
Há ainda 40 grupos que vivem isolados, completamente ou parcialmente – em contato com indigenistas.
A diversidade entre os povos indígenas brasileiros é alta, mas seria muito maior não fosse a severa redução populacional registrada no último século, sobretudo na primeira metade. O lendário antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro afirmou que naquelas cinco décadas desapareceram mais de 80 etnias. Para o autor, na virada para o século 19 ainda existiam mil diferentes grupos indígenas no território brasileiro.
Em relação a todos outros países das três Américas, o Brasil é o lanterna em proporção entre população geral e população indígena. Tomando em conta o Censo de 2010, os índios são 0,47% da população brasileira. Isto é menos até que Canadá (3,59%), Argentina (1,1%) e Estados Unidos (0,75%). Na outra ponta da tabela está a Bolívia (50,5%), de acordo com dados do Instituto Indigenista Interamericano.
A terra indígena
“A nossa terra é nosso espírito. Um índio sem terra é um índio sem alma”, assim um dos líderes da etnia Cinta-Larga definiu a relação do indígena com seu espaço natural. Não é uma simples ocupação de espaço para morar, mas uma simbiose entre moradia, fornecimento de alimento e templo sagrado.
Na maioria das religiões indígenas, cada árvore e cada rio são ícones de adoração, tal qual capelas ou imagens em crenças de origem europeias.
Perder a terra onde os antepassados viveram traz duas trágicas consequência à população indígena: perda da cultura e tradição e falta de recursos para sobrevivência. Dessa forma, os índios são empurrados para o estilo de vida ocidental, abrindo mão de sua religião e precisando se adequar a uma condição produtiva estranha à sua cultura.
As Terras Indígenas (TI) demarcadas pelo Estado são a forma de frear este movimento. Hoje, são 705 Terras Indígenas, que ocupam 13,8% do território nacional. Deste montante, 98,33% está concentrada em território amazônico – é quase um quarto da Amazônia brasileira. Das demais, somente 1,67% do total, está distribuída pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e estados de Mato Grosso do Sul e Goiás.
A primeira reserva indígena brasileira foi criada apenas em 1961. Trata-se do Parque Indígena do Xingu, situado no norte do estado de Mato Grosso. Em 1973, houve definições de reserva indígena a partir da fundação do Estatuto do Índio. De maneira definitiva, as TIs foram estabelecidas somente na Constituição de 1988, demarcadas a partir de pareceres da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Como isso reflete na população indígena?
Queda expressiva na população e pouco espaço para sobreviver e manter sua tradição. Epidemias, massacres, aculturamento e ondas de suicídio são causas e consequências tristes da história do índio brasileiro. Lembramos aqui alguns destes momentos:
Aculturamento
“Os colonizadores ignoravam a visão de mundo que os índios tinham, obrigando-os a falar o português, a acreditar no seu Deus e a abandonar hábitos culturais que eles cultivavam há milênios. As escolas “civilizadas” que as missões impuseram aos índios foram exemplos de violência cultural sem precedentes”, escreveu a pesquisadora Raquel Teixeira em “As línguas indígenas do Brasil”.
Esta imposição cultural e religiosa é regra desde 1500. Os jesuítas portugueses vinham ao Brasil para converter os nativos à fé cristã e frequentemente os índios eram também escravizados, sendo assim divididos e retirados de suas terras e grupos familiares, perdendo contato com as tradições. Isso acontecia no melhor caso, a maioria não suportava o trabalho e não sobrevivia.
Quatro séculos se passaram, a escravidão foi proibida, mas a evangelização seguiu. “Para eles [índios], nós somos os maus e ferozes, pois essa é a imagem que têm dos aventureiros brancos que os expulsaram de seus territórios. O SPI [extinto Serviço de Proteção ao Índio] tem procurado manter essa amizade, evitando a ação nefasta de indivíduos inescrupulosos e trazendo-os à fé cristã”, escreveu em 1964 o sertanista Francisco Meirelles.
Não só a fé, mas a língua indígena está sendo aos poucos apagada. Ainda de acordo com o Censo de 2010, 57% dos índios brasileiros não falam sua língua tradicional. Se considerarmos apenas os índios que vivem fora das Terras Indígenas, são 87% que não dominam o idioma de seus antepassados.
Suicídio
Há muito índio se matando no Brasil. O pico de suicídio indígena no país se deu em 2013. Naquele ano, a taxa de suicídio indígena chegou a 30 para cada 100 mil pessoas, média seis vezes maior que a da população total, de 5 para cada 100 mil. Este índice estaria entre os cinco países com mais suicidas do mundo.
Dentre os vários motivos, alguns são determinantes: perda de terras, impossibilidade de praticar suas crenças, envolvimento com álcool e drogas e falta de condições econômicas para sobreviver. Todos eles convergiram em 2013, ano no qual os Guarani-Kaiowá foram trágica notícia: houve 73 casos de suicídios entre a etnia.
Um estudo da Unicef e do Grupo Internacional de Trabalho sobre Assuntos Indígenas (IWGIA) explicou as mortes como resultado de um processo histórico. “Esses jovens indígenas carregam um trauma humanitário cheio de histórias contadas por seus parentes, histórias de exploração, violências, mortes, perda da dignidade, enfim, a história recente de muitos povos indígenas. Histórias carregadas de traumas, presas a um presente de frustrações e impotência”, diz o paper.
Os dados mais recentes, de 2015, mostram que a situação não melhora. Houve 87 casos de suicídio em todo o país, sendo 45 deles no Mato Grosso do Sul, recordista de suicídios no Brasil e estado onde vivem os Guarani-Kaiowá.
Em seus textos, Darcy Ribeiro deu seu parecer. “Destruíram nos índios a confiança nos seus próprios valores, sem serem capazes de introduzir outros que lhes assegurem o mínimo respeito a si próprios, indispensável para qualquer comunidade humana possa subsistir. Neste processo, o índio aprendeu a se olhar com os olhos do branco, a considerar-se um pária, um bicho ignorante, cujas tradições mais veneradas não passam de tolices ou heresias que devem ser erradicadas”.
Epidemias
Em pleno ano de 2015, 110 crianças indígenas de até cinco anos morreram, e isso apenas no estado do Mato Grosso. De acordo com o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário, os principais motivos são: pneumonia, diarreia e gastroenterite. O estudo afirma que 99 não teriam morrido caso tivessem tratamento adequado.
Ainda assim, a situação do índio hoje é melhor que nunca do ponto de vista da saúde. Ainda que precariamente, a Funai e a Casaí (Casa de Saúde Indígena) atuam na prevenção e no combate de doenças simples que matam esta população e poderiam ser evitadas. Mas nem sempre foi assim.
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, um dos mais relevantes do século passado, viveu no Brasil entre 1935 e 1939, tempo em que lecionou na USP e acompanhou grupos indígenas, como os caingangues e os bororos. Em sua obra mais importante, Tristes Trópicos, relata um dos métodos mais cruéis de disseminar epidemias e matar os índios:
“Apanhavam nos hospitais as roupas contaminadas das vítimas da varíola, para pendurá-las, como outros presentes, ao longo dos caminhos ainda frequentados pelas tribos. Graças a isto foi obtido um brilhante resultado: o Estado de São Paulo, do tamanho da França, que os mapas de 1918 davam como tendo ainda dois terços de território desconhecido, habitado apenas pelos índios, não tinha, quando eu lá cheguei em 1935, um único índio, se excluirmos o grupo de algumas famílias localizadas na costa, que vinham vender aos domingos, nas praias de Santos, umas chamadas curiosidades”. À época, os índios já viviam a uns 3.000 km para o interior.
Massacres
O maior genocídio indígena do século 20 foi promovido contra a etnia Cinta-Larga, que habita a fronteira entre Rondônia e Mato Grosso, e ficou conhecido como Massacre do Paralelo Onze. Não há dados precisos, mas a estimativa é de que cerca de 3.500 índios tenham sido assassinados em uma série de ataques no ano de 1963. O motivo: expansão da atividade seringueira e mineradora.
Assassinos de aluguel invadiram as terras indígenas sob a ordem de Antonio Junqueira e Sebastião Arruda, ex-presidente do Banco da Amazônia. Eram donos de uma das empresas seringueiras mais ricas do país à época, a Junqueira e Arruda.
O massacre se deu de todas as formas possíveis. Pelo ar, há o relato do uso de um avião tipo Cesna 190 azul para jogar bombas de dinamite sobre as aldeias Cinta-Larga.
Pelo rio, os assassinos transportavam alimentos estragados e açúcar. A comida deteriorada foi dada como presente aos índios, assim como o açúcar. Acontece que nele foi misturado arsênico e formicida. No dia seguinte muitos já apareceram mortos e pensou-se que se tratava de mais uma epidemia.
Por terra ocorreu a maior parte dos crimes. E também o episódio mais cruel. Uma caravana de cinco assassinos invadiu as terras do povo Cinta-Larga armados de pistolas calibre 45, revólveres, metralhadoras e até granadas. Não havia perdão, todos que eram vistos, eram mortos. Um dos agentes da chacina, inclusive, confessou a morte de uma mãe com seu filho: a criança com um tiro na cabeça, e a mulher cortada ao meio por facão, como um animal no abatedouro.
À época, o presidente da Comissão de Inquérito, procurador Jader de Figueiredo Côrrea, deu a seguinte declaração. “Do roubo ao estupro, da grilagem ao assassinato, do suborno às torturas medievais, passando pelo lenocídio, pelos desregramentos e taras sexuais, por todos os crimes contra a administração pública, tudo se cometeu contra a lei e contra a moral”.
O episódio só foi descoberto em 1968 e levou ao fim o Serviço de Proteção ao Índio, cujos agentes foram acusados de compactuar com o crime. O médico indigenista Noel Nutels, à época, explicou: “Essa situação funcionou como uma cadeia, partindo dos grupos econômicos que pressionavam políticos e muitas vezes deles fazendo parte. Dentro deste círculo, políticos pressionavam os gabinetes ministeriais que, por sua vez, faziam o mesmo com os diretores do SPI”.





