16/05/2018 14h39
Indiferença de pedestres e motoristas com profissionais da limpeza é resultado da desigualdade social no país, afirma psicanalista
Fonte: Época / por Matheus Rocha
Valdo Luís Marques, de 51 anos, trabalha há 16 anos como gari no Rio de Janeiro. Sabe bem que, apesar do laranja berrante, o uniforme da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) funciona como uma capa de invisibilidade. Os profissionais que o vestem deixam de ser notados por boa parte dos pedestres e motoristas, ainda que desempenhem um trabalho fundamental para a cidade. Marques acredita que essa indiferença resulta de uma série de equívocos sobre a atividade — cuja importância é comemorada neste 16 de maio, o Dia do Gari.
Um dos erros é acreditar que pegar na vassoura é sinônimo de baixa escolaridade. “Tem esse rótulo de que, se não estudar, você vai virar gari. Não! Se não estudar, você não se torna um de nós”, disse. Para integrar o time de 14.272 profissionais que ajudam a zelar pelo Rio de Janeiro, é necessário ter concluído o 5º ano do ensino fundamental e responder a 20 questões objetivas de língua portuguesa. A competição é digna de um vestibular. No último concurso, realizado em 2015, foram 79.600 inscritos disputando 100 vagas.
Morador de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, Marques acredita que contribui para a indiferença da população a ideia equivocada de que o gari não preza pela própria higiene. A essas pessoas, avisa: “Não é por aí. Não é porque o cara é gari que ele vai andar com a unha suja. Não é porque o cara é gari que ele vai andar todo sujo. Tem de ter um marketing pessoal.”
Com brinco cintilante na orelha e um quê de locutor na voz, Marques é uma das pessoas que ajudam a recolher todos os dias entre 9 mil e 10 mil toneladas de lixo das ruas do Rio. Embora reconheça que a maioria evita a prática, o profissional ainda vê alguns cariocas deixando as lixeiras de lado para descartar o lixo no chão. Quando questionados, dizem que fazem isso para garantir que o gari não perca o emprego por falta de lixo. Para Marques, a desculpa não convence. “Isso é mito. Agora, imagina se o cara vai tacar fogo na casa dele para manter o emprego do bombeiro? Vai deixar as portas abertas para dar emprego para o policial? Existe gente que tem essa mentalidade de que, se não sujar, vou perder o emprego. Não, eu sou concursado, meu amigo.”
Apesar de sentir que alguns ainda tratam garis com indiferença, Marques não esconde o orgulho da profissão. “Adoro o que faço. Nós somos hoje zeladores do meio ambiente. Minha profissão é igual à de um arquiteto, à de um professor. Nada os diferencia da gente,” E recomenda ainda um exercício de empatia aos que reservam preconceitos a uma função que, em suas palavras, “é tão nobre”.
O psicanalista Fernando Braga da Costa conheceu de perto a realidade de profissionais como Marques. Por dez anos, trabalhou varrendo as ruas da Universidade de São Paulo (USP), onde fazia mestrado em psicologia. A partir da experiência, nasceu o livro Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social, lançado em 2004. Costa, de 42 anos, contou que o interesse pelo tema surgiu ainda na graduação, quando precisou trabalhar como gari para uma atividade acadêmica.
Logo no primeiro dia foi fácil perceber como um uniforme pode determinar quem é visto e quem é ignorado. “A experiência mais aguda em termos intersubjetivos, de contato humano a respeito da invisibilidade, foi ter passado por dentro da faculdade em que estudava”, relembrou. Ao ser visto uniformizado, Costa esperava despertar a curiosidade dos colegas e, quem sabe, virar alvo de gozações. No entanto, contrariando qualquer expectativa, nem sequer foi notado.
Para o especialista, esse fenômeno é fruto de um país ainda pautado pela desigualdade. “Quanto maior o fosso social, maior a probabilidade de o sujeito pobre não ser tomado como um ser humano, a ponto de não receber um simples cumprimento.” De acordo com ele, o processo acaba naturalizado, já que poucas pessoas o encaram como um problema capaz de gerar consequências psicossociais, como a depressão.
“Isso vai cravando no indivíduo certas convicções que vão controlar seu comportamento. Determinarão os lugares que ele considera confortável e autorizado a estar. E, obviamente, ele não pode voltar para a casa como quem usufrui do espaço público de uma forma livre”, avaliou. Com frequência, os efeitos desse processo podem ser denunciados pelo corpo das pessoas, por meio de gestos e olhares. “É possível encontrar inclusive repercussões físicas, porque se observa claramente no andar dessas pessoas, no olhar, na postura física, que o corpo delas não está à vontade. O olhar em geral pode estar rebaixado, pode estar intimidado”, analisou Costa.
Inspirados pela experiência do psicanalista, 12 magistrados do Rio de Janeiro abandonaram por um dia o formalismo dos fóruns para viver a rotina de quem trabalha com prestação de serviço. O desembargador Marcelo Augusto, de 52 anos, foi um dos participantes do projeto Vivendo o Trabalho Subalterno e atuou como gari em Botafogo, Zona Sul do Rio. “O projeto trabalha uma coisa essencial quando se fala de judiciário e magistratura: ele trabalha o olhar do juiz. Trabalha a pessoa do juiz, e não o cognitivo. Trabalha quem ele é”, disse ao explicar a iniciativa.
O desembargador comentou também que, logo nas primeiras horas da experiência, uma pergunta ganhou coro entre os garis: “Por que seu uniforme é tão novo?”. O estranhamento dos profissionais não era à toa. “Fui descobrir depois que naquele ano não tinha sido distribuído uniforme novo para a galera”, explicou. O magistrado lembrou que, enquanto varria uma praça de Botafogo, um homem forte, corpulento, desceu do caminhão de lixo em que estava, olhou em sua direção e repetiu a pergunta que havia se tornando onipresente: “Por que seu uniforme está tão limpo assim?”.
“Expliquei para ele que era meu primeiro dia de trabalho. A reação do cara foi muito interessante. Ele abriu os braços e falou: ‘Parabéns! Seja feliz. Que você goste do serviço. É muito legal.’” Situações como essa mostraram ao magistrado que, embora exija preparo físico, manter a cidade limpa é um trabalho rico em diversos aspectos. Naquele dia como gari, disse não ter se sentido ignorado pelos transeuntes, que com frequência o cumprimentavam. No entanto, destacou outra espécie de invisibilidade que por vezes é esquecida.
Apesar da cor laranja dos uniformes ter sido adotada para evitar acidentes — projeto do renomado designer Aloisio Magalhães (1927-1982) implantado em 1976 —, eles ainda acontecem por desatenção dos motoristas e motociclistas. “O pior inimigo do gari é o trânsito. Há muitos relatos de atropelamento, de licença médica por conta disso. Há toda uma técnica para você varrer o passeio público, a canaleta, para se proteger do carro. Os carros não respeitam”, afirmou.
Sharlene Paula, de 33 anos, trabalha como gari há três anos e disse ter presenciado situações em que a imprudência dos motoristas por pouco não terminou em tragédia. “Os quase acidentes que presenciei têm mais relação com os motoristas que estão sempre dirigindo com o celular na mão. Então não veem a gente, não veem o carrinho e acabam batendo. Com relação ao gari, sempre há reuniões nos alertando sobre isso”, disse. Nessas reuniões, eles recebem orientações sobre métodos para evitar acidentes, como não usar fones de ouvido e pôr o carrinho sempre à frente, de modo a ser alertado em caso de batidas.
Se os motoristas parecem ignorar o trabalho dos garis, Paula afirmou ter o trabalho reconhecido por quem passa na rua. Não pensa duas vezes ao responder o que mais gosta na profissão: “O melhor é trabalhar na rua, ter contato com o público, que é uma coisa que gosto muito, ver o movimento”. E o lado ruim? “É o sol. O sol do Rio de Janeiro realmente não é bom”, disse às gargalhadas.