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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

DA REPÚBLICA DOS ERVAIS AOS CURRAIS GUARANIS

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12/10/2020 20h03

Por Sady Bianchin

Para descrever a República do Alto Amambai Nery Costa Junior, bebeu água benta na mesma pia batismal com as gotas de orvalho do cotidiano da arte de um povo e seu inconsciente coletivo tatuado na memória em que urge os grandes passeadores/literatos dos tempos em que não se perde, ganha-se com os fragmentos das praças que não passam e permanecem nas fileiras das rodas ancestrais como revisitar as obras de Heráclito, Lima Barreto, João do Rio, João Cabral e tantos outros que nos iluminam com a lamparina acesa do fogo da paixão da arte popular e autêntica. CHE TIEMPO GUARÉ (2020 – editora Biblio) traz as constatações históricas do povoado em pedaços filosóficos, instantes de humor, interpretações sociológicas, porque “não basta constatar, é preciso transformar” como diz K. Marx, subjetividade no âmbito psicológico e resgate da memória com produção de sentidos estruturais com o olhar antropológico sem perder de vista o estado de graça, a competência, o valor das consagrações dos nossos esportistas e nossos políticos que marcaram época no processo evolutivo das narrativas da cidade. Estes campos das categorias dos saberes científicos da vida escolar criaram um protótipo de guri nas áreas humanas. Mas muito além dos embalos de Baden Powell ou dos sábados à noite rodando na Roda Viva, ou mesmo das academias gregas ou troianas, Nery faz o retorno à base, como um pássaro de fogo que renasce das cinzas, para percorrer o mundo maravilhoso do cinema como uma primavera que desabrocha fora da estação do encontro. Avança na poeira da estrada da saudade, trazendo nas lembranças os circos que habitam o nosso coração de viagens em viagens, parques e acampamentos que deixaram marcas na alma dos Amambaienses. O autor anda por caminhos pés no chão da sua terra Natal, relembrando dos “cueras”, e não esquece as armas da defesa da dignidade, sabres e tacapes dos primitivos donos das matas e do saber local. Carrega a resistência da ancestralidade para a justiça, com amor e a elegância que lhe é peculiar expandida pelo Brasil afora. Conhece a causa como o vôo alto dos condores em pleno período de turbulências da contemporaneidade. Sabe muito das quimeras e das quermesses, enxerga além do tempo e do espaço, pois conhece passo a passo este território dos ERVAIS e currais Guaranis.

Bebe na fonte em todas as cabeceiras de nascentes da região, mas o banho do corpo do memorialista não dispensa as águas barrentas (hoje pelo assoreamento) do Rio Panduí, porque a máxima filosófica de Heráclito já denunciava “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, e as águas límpidas de ontem da infância ainda vão rolar muito dentro do CHE, para nos alimentar das chipas sagradas no crepúsculo da tarde na garupa do horizonte que anuncia a ave Maria no sino da catedral.
Na percepção das horas e palavras da luta pela vida e da poesia GUARÉ, tudo do passado fica borbulhando no calor de um barbacuá, sendo burilado para ser transportado para os tempos pós – modernos das rodas de tereré.

Escrever o almanaque de um povo é uma busca permanente daquilo que um dia o fascinou, é pisotear o terreno tantas vezes for necessário para pavimentar sua trajetória, é subverter o tempo e a linguagem, é ser transgressor da distância, como diz Umberto Eco sobre a criação: “Qualquer obra exige uma resposta livre e inventiva”. Nery estreia no palco da realidade literária, com o saudosismo romântico de um retratista caleidoscópico que estrutura as facetas como um mosaico de imagens que perpassa o passado e o presente, aponta com uma flecha o futuro, que nos revela humanos e seres de luz como gente, agentes de emancipação da República Guarani . Tenho certeza que ele já sabe, que na labuta das letras, é preciso sempre se garimpar, como dizia o poeta Vladimir Maiakóvski : ” Nós polimos a alma com a lixa do verso”.

Com o resistir áspero neste nosso fantástico e terrível planeta, o escritor não renuncia ao seu passado, pois sabe que não é suficiente acreditar na história, é preciso viver a história, mesmo que no alto Amambai as coisas estivessem diferentes do resto do Brasil, não estamos isolados desta nação moedora de vidas, que esta sociedade atual nos impõe e que cada gesto, cada palavra de saudade no CHE possa impulsionar o leitor para a luta por justiça social, democracia e liberdade de uma forma plural em qualquer lugar do mundo. Assim, penso eu, com a imagem do sol entrando no cerrado/ ao som do crepúsculo brejeiro/ a saudade me trouxe pelo laço / de Amambai ao Rio de Janeiro.

Sady Bianchin /Ator, poeta, cineasta e diretor teatral.
Doutor em Teatro pela Università di Roma – La Sapienza.

DA REPÚBLICA DOS ERVAIS AOS CURRAIS GUARANIS

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