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terça-feira, 17 de junho de 2025

Bióloga ajuda a transformar a agricultura familiar em Mato Grosso do Sul

Mara Mussury desenvolve projetos de extensão no assentamento Itamarati, um dos maiores da América Latina

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Depoimento concedido a Patricia Mariuzzo,
da Revista Pesquisa FAPESP

Meu gosto pelas plantas veio das mulheres da minha família. Nasci e fui criada no Rio de Janeiro. Minha avó era indígena e tanto ela quanto minha mãe tinham um vasto conhecimento sobre o cultivo de plantas e o uso de ervas medicinais.

Ao chegar o momento de optar por um curso superior, a biologia foi uma escolha natural. Ingressei no curso de ciências biológicas da Universidade Gama Filho em 1982, mas pela dificuldade de arcar com os custos do ensino superior privado consegui no mesmo ano uma transferência para a Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais.

Foi lá que compreendi como o estudo dos processos biológicos das plantas pode otimizar a agricultura – e me apaixonei pela botânica aplicada. No meu trabalho de conclusão de curso, analisei a biologia da polinização das flores da Crotalaria anagyroides H. B. K., conhecida popularmente como xique-xique. Assim como outras espécies do gênero Crotalaria, ela é tóxica, mas pode ser utilizada como adubação verde e auxilia no controle de nematoides [vermes] e plantas daninhas.

Três anos depois de formada, em 1989, mudei-me para Dourados, em Mato Grosso do Sul, em busca de oportunidades profissionais. Queria muito ajudar minha família no Rio, que após o falecimento do meu pai, em 1983, passou a viver com dificuldade.

Além disso, meu namorado, que conheci durante a graduação em Viçosa, estava morando em Ponta Porã [MS], cidade próxima a Dourados. Ele é agrônomo. Casamos logo após minha mudança para Mato Grosso do Sul e estamos juntos até hoje. Nos primeiros anos, trabalhei como professora de biologia no ensino básico, mas meu sonho era atuar na universidade.

Foi no mestrado em agronomia que iniciei minhas pesquisas sobre a relação de insetos e plantas. Na dissertação defendida em 1997, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul [UFMS], avaliei a interação entre insetos e as flores da Brassica napus L., a canola.

Em 2000, mesmo com dois filhos pequenos, com 9 e 7 anos, iniciei o doutorado em ciências biológicas na Unesp [Universidade Estadual Paulista], em Botucatu. Fiz a caracterização da morfologia e da anatomia dos órgãos vegetativos – raízes, caules e folhas – da Pfaffia glomerata, também conhecida como ginseng-brasileiro. Trata-se de uma planta com longa história de uso pelos povos indígenas e na medicina popular, além de ter seu potencial farmacêutico já comprovado. Em 2003, um ano antes de concluir o doutorado, nasceu meu terceiro filho.

Meu sonho de ser professora universitária se concretizou em 2006, quando fui aprovada em um concurso da Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais da Universidade Federal da Grande Dourados [FCBA-UFGD]. As pesquisas e parcerias na universidade me abriram novos caminhos de trocas e de aprendizado. Um deles me levou até o assentamento Itamarati, criado em 2002 e hoje considerado um dos maiores da América Latina.

Com cerca de 50 mil hectares, o Itamarati fica em Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai. Em 2017, vi no convênio assinado entre essa comunidade, a prefeitura e a universidade, uma oportunidade de levar para o campo meu conhecimento de botânica aplicada à agricultura.

A partir de encontros e rodas de conversa com grupos de agricultores do assentamento e gestores do município surgiu o projeto de extensão Centro de Desenvolvimento Rural: Rede de Soluções Sustentáveis, o CDR. A iniciativa tem a colaboração de pesquisadores da UFGD, sendo alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS] da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas [ONU].

O Itamarati abriga por volta de 2.800 famílias, ou quase 17 mil pessoas, que se dedicam à produção de alimentos, desde hortaliças até culturas de feijão, milho e soja. Isso tanto para subsistência como para venda do excedente.

Bióloga ajuda a transformar a agricultura familiar em Mato Grosso do Sul
A pesquisadora e o agricultor João do Prado, morador da comunidade. Foto:Arquivo pessoal

Quando iniciamos o projeto, já havia na comunidade o desejo de restringir o uso de defensivos químicos. Foi quando propus adotar os bioinseticidas. Em 2019, começamos a visitar os agricultores e as escolas da região, buscando entender as necessidades locais. E só então apresentar a essas pessoas as tecnologias específicas, ensinando a fabricar e aplicar os bioinseticidas.

As pesquisas que venho realizando ao longo dos anos mostram que diversas plantas, especialmente as do Cerrado, têm potencial como bioinseticidas. Esses estudos resultaram em um banco de dados com espécies botânicas que apresentam efeitos comprovados no controle de insetos que impactam a produção agrícola.

A partir da elaboração de um bioinseticida à base de barbatimão [Stryphnodendron adstringens], é realizado o controle da traça-das-crucíferas [Plutella xylostella], praga que afeta culturas como repolho e couve. No assentamento, como o plantio é feito por um número considerável de produtores, esse controle é imprescindível.

A adoção dos bioinseticidas é um trabalho de longo prazo, que envolve um componente fundamental: a educação. Muitos acreditam, por exemplo, que pelo fato de terem sido desenvolvidos a partir de plantas, os bioinseticidas dispensam o uso dos equipamentos de produção individual, o que não é verdade. Embora esses compostos sejam, em geral, menos tóxicos, também podem causar irritações cutâneas e, eventualmente, problemas respiratórios.

Além das visitas aos agricultores, atuamos nas três escolas da comunidade, onde instalamos hortas para apoiar atividades didáticas. Elas envolvem técnicas de cultivo, cuidados com o solo e a água, a fabricação e o uso dos bioinseticidas, além da disponibilização de alimentos para a merenda escolar.

Nosso público é formado por alunos do ensino fundamental, do médio e do EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Um dos resultados do nosso trabalho é contribuir para a permanência desses jovens no campo.

Ainda no eixo da educação, por meio de uma parceria com a prefeitura, são oferecidos oficinas e cursos de capacitação para as mulheres, em temas escolhidos por elas mesmas. A proposta é de que possam gerar renda a partir do trabalho realizado no próprio assentamento.

O apoio da universidade e da prefeitura de Ponta Porã é a âncora do CDR. No entanto, ao longo desses anos, temos ampliado nossa atuação no assentamento por meio de projetos específicos com o governo estadual, no eixo da educação. Outro ponto importante é a concessão de bolsas para alunos da UFGD, via CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul [FUNDECT].

Em 2025 conseguimos recursos com a Itaipu Binacional, por meio de edital público, para a aquisição de maquinários destinados à Cooperativa dos Agricultores Familiares do Itamarati. Esses equipamentos são voltados ao beneficiamento dos produtos agrícolas, com o objetivo de aumentar seu valor de mercado.

Meu sonho agora é construir uma fábrica para produzir bioinseticidas em larga escala e, com isso, atender as comunidades, dentro e fora do Itamarati. Além dos recursos financeiros, há um desafio tecnológico, o de trabalhar com compostos ativos naturais, que podem variar conforme fatores como o clima, o solo e a altitude. Ao contrário dos defensivos químicos convencionais, sintéticos, alguns bioinseticidas são sensíveis à luz, à temperatura e à umidade, o que dificulta o armazenamento e a aplicação em campo.

Quando sonhei em ser professora universitária, não tinha ideia de onde essa escolha me levaria. Hoje, aos 62 anos, percorrendo as estradas de terra do assentamento, sei que estou no caminho certo.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Fonte: Pesquisa FAPESP

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